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O Estado de São Paulo
Aliás
15/05/2005


Uma história de fibra
Filha de Gurgel narra a saga do pai, que ousou construir um carro brasileiro puro-sangue

Mônica Manir


Meu pai sempre foi extremamente ativo, rápido de raciocínio, um gênio para quem o conheceu. Não criou apenas carros. Tinha projeto de ônibus, helicóptero, barco, kart, fazia parte de um grupo de engenheiros de ponta. Dizia que ia construir uma fábrica de automóveis - e construiu. Dizia que ia fazer um carro totalmente nacional - e fez. Alguns o consideravam invencível, um herói. Mas, pouco tempo depois da falência da fábrica, passou a se desconectar do mundo. Respondia perguntas de maneira truncada, sem muita lógica. Achamos que era sinal de depressão, que estava fugindo dos assuntos que o chateavam. Demorou para associarmos esse comportamento ao Alzheimer. Hoje, aos 79 anos, meu pai não fala, não anda, não reconhece ninguém, às vezes abre um pouco os olhos, mas fecha em seguida. No começo até atribuímos o aparecimento do distúrbio ao golpe que recebeu. Mas o pai dele teve Alzheimer e dois irmãos mais novos também manifestaram os sintomas. Estava predestinado à doença.

A falência foi decretada em 1996 e, a partir de então, a família ficou alijada do processo. Quem cuida disso é o síndico da massa falida. Não faz muito tempo vi um filme que mostrava o interior da fábrica (Gurgel e o Carro do Brasil, dirigido por Caio Cavechini) e deu vontade de chorar. Tem peças jogadas, vidros quebrados, poças d'água. O lugar era muito organizado, não havia sujeira no chão. Antes de sair, os funcionários limpavam tudo. Era uma loja. O que sobrou? Ferro-velho. O que tem para leiloar é isso, apenas sucata.

(A Gurgel Motores foi inaugurada em 1975 às margens da Rodovia Washington Luís, em Rio Claro, a 175 quilômetros da capital. João Augusto Conrado do Amaral Gurgel pensou longe ao escolher esses quase 15 alqueires de terra. Além da estrada em frente da fábrica, há outra logo atrás, que escoaria a produção para o Rio Tietê, numa futura desova pluvial. E entre uma e outra passa uma ferrovia. Em 21 anos de ativa, a Gurgel colocou no mercado 40 mil veículos. Passados quase nove anos da falência, resta pouco dos e nos cinco barracões: carcaças do Supermini sobre um carrossel, portas do X-12 num canto, moldes sem fibra, pranchetas empoeiradas, mato alto, pernilongos, um quadro-negro escrito "Thiau (sic), Gurgel do meu coração. Um forte abraço. Fim". O preposto do síndico da massa falida, Jaime Marangoni, lembra que muitas peças foram roubadas e fica difícil vender o que sobrou no varejo porque o material que compõe os carros é assim, fácil de recuperar. "Se arrebentar uma porta do carro, o cara despeja uma mistura de resina com fibra de vidro em cima e pronto, está nova." E o que arrebentou a empresa? "Acho que foram vários fatores, desde os salários atrasados até os empréstimos que não saíram. O Gurgel foi um engenheiro exemplar, mas um administrador pecável.")

Meu pai demorou muito tempo para admitir a gravidade da história. Como nunca tinha falhado na vida, não achou que seria dessa vez. É de uma geração que não divide angústias. Ele não iria chegar para os três filhos e dizer que estava preocupado. Na época da concordata, eu estava na França. Lá soube que a CUT tinha quebrado tudo quando meu pai atrasou os salários. Era a época do movimento sindical brutal e todas as empresas automobilísticas sofreram com isso. São Bernardo do Campo até hoje não se recuperou de tanta greve. Acho que eles não têm noção do que isso significou para a Gurgel, para o país, para os funcionários. Recuperar todo aquele patrimônio não era brincadeira.

(De tanto se envolver com a fábrica, Luiz Bortolin virou Luiz da Gurgel. Trabalhou na empresa de 1983 a 1996 como encarregado da venda de peças e, depois disso, passou a ajudar na administração da massa falida. Chegou a ser vigia diurno da empresa, mas abandonou o posto quando encontrou os dois guardas da noite mortos por ladrões. Antes da concordata, tinha uma relação distante com o patrão, depois chegou a vê-lo chorar diante das dívidas. Gurgel pagou os funcionários em dia até dezembro de 1992. Faltou metade do décimo terceiro. Pulou janeiro do ano seguinte. Logo o sindicato acampou na porta da fábrica, fez piquete, mas, segundo Luiz, não passou disso. "Que eu saiba, não quebraram nada." Ele diz que Gurgel tinha aversão à CUT, tanto que só empregava os que comprovassem não ter nenhum vínculo sindical. Na época, ele baseava o pagamento dos salários em UBS, Unidade Básica de Salário - foi um dos primeiros empresários do País a fazer uma correção mensal. Anunciou que ficaria em dia com os funcionários em setembro daquele ano, depois em dezembro, depois... "Hoje a dívida com os empregados bate os R$ 28 milhões", contabiliza Luiz. Eles têm prioridade numa possível venda dos imóveis da Gurgel e Rio Claro conta com uma injeção de ânimo no mercado local a partir de então. Enquanto isso, pouco se fala a respeito. "É como se a cidade tivesse vergonha do acontecido", supõe. Do patrão guarda a lembrança de um homem de idéias grandes, que encampou a produção nacional de carro, mas se descapitalizou quando decidiu montar uma fábrica no Ceará.)

A Gurgel trabalhava em nichos de mercado porque era muito complicado concorrer com os grandes. Num primeiro momento, meu pai investiu em carros que venciam terrenos difíceis e não eram corroídos pela maresia. Por isso tem muito jipe da Gurgel no Nordeste, na Amazônia, no Caribe. Ele usava o motor da Volkswagen e uma estrutura super-resistente chamada plasteel, desenvolvida pela Gurgel. O Exército e a Aeronáutica compraram vários modelos de jipe. Lembro do meu pai bolando um que pudesse ser jogado de um avião com pára-quedas. Mais tarde investiu no Itaipu, um automóvel elétrico, que recarregava em qualquer tomada 220.

Então surgiu a idéia do carro econômico. Com a crise do petróleo e o incentivo ao Proálcool, poucas pessoas tinham condição de fazer a conversão e o povo só conseguia comprar carros usados que consumiam 3 a 4 litros por quilômetro. A Gurgel desenvolveu o BR-800, BR de Brasil e 800 de cilindradas em motor de dois cilindros opostos, refrigerado a água,que fazia 15 quilômetros por litro. Com esse projeto, meu pai reivindicou e conseguiu do governo o IPI reduzido para carro econômico. Foi uma chiadeira geral das montadoras grandes. Até que a Fiat pegou uma carona na proposta e fez o seu 1.0, que estourou no mercado. Atrás vieram outras. Tenho orgulho de dizer que, se temos carro econômico hoje, foi por causa da iniciativa do meu pai.

Em busca de um novo nicho, ele achou que valia a pena construir uma fábrica no Ceará. Custava quase 30% a mais para levar os carros até lá de caminhão por estradas ruins. Comprou um terreno de 650 mil metros quadrados em Eusébio, nos arredores de Fortaleza, e pensou em construir ali uma unidade para fabricar câmbios e diferenciais e outra para montar carros populares e econômicos, o chamado projeto Delta. Em 1991, os governos do Ceará e de São Paulo assinaram um protocolo de intenções apoiando o projeto e meu pai passou a investir pesado nisso. Começou a sacar dinheiro, cerca de US$ 3 milhões, tendo os dois governos como avalistas. Aí, de repente, passaram a não atendê-lo mais dizendo que devia exatamente US$ 3 milhões. Ciro Gomes e Fleury desistiram do projeto ao mesmo tempo. Por que avalizaram se não tinham a intenção de entrar como sócios? Meu pai não tinha como produzir o carro porque nem sequer tinha acabado de construir a fábrica. Então quebrou.

(Procurado, Ciro Gomes, atualmente ministro da Integração Nacional, mandou este e-mail: "No governo anterior ao meu, a Gurgel manifestou interesse de instalar, em Fortaleza, uma unidade industrial para produzir automóveis. Neste sentido foi celebrado um acordo entre a Gurgel e o governo do Estado do Ceará. O primeiro passo da Gurgel foi o de obter, como realmente obteve, um empréstimo equivalente a US$ 5 milhões junto ao Banco do Nordeste do Brasil (BNB), tendo o Banco do Estado do Ceará (BEC) como avalista. A Gurgel não honrou o empréstimo, razão pela qual, quando eu assumi o governo cearense, o BEC estava amargando um prejuízo equivalente a US$ 5 milhões. A Gurgel solicitou mais recursos financeiros do Estado do Ceará para implementar seu projeto. Diante da inadimplência da Gurgel e das conseqüências que ela causou ao BEC, eu não podia atender à solicitação. E não atendi".)

A partir do momento em que meu pai passou a fabricar um motor próprio, começou a ser bombardeado de uma maneira impressionante. Avisaram que isso aconteceria. Também brigou com o pessoal do Proálcool porque achava que o campo deveria produzir comida, não combustível. Mais pressão. Talvez lhe faltasse habilidade política. Teria de ceder à corrupção, ou seja, dar 10% aqui, 20% ali, mas não queria essa moeda de negociação para o resto da vida. Sempre foi muito crítico, sempre gostou de desafiar as pessoas, como fez com o professor de faculdade dele. Chegou um momento em que não deu mais. Mas os carros continuam por aí, e vira e mexe pareio com um deles querendo comprar um modelo bem-conservado.

(A passagem com o professor de faculdade, que ficou famosa, quase folclórica, é a seguinte: ao apresentar o trabalho de conclusão do curso de Engenharia Mecânica-Eletricista na USP, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel burlou as regras. Em vez do tradicional projeto de guindaste, levou a público o Tião, o primeiro automóvel genuinamente brasileiro. Diante da farfalhante gargalhada dos demais alunos, ouviu do professor que carro, no Brasil, não se faz, se compra. Ele varou a noite para garantir o diploma com um guindaste. E varou a vida atrás do projeto de um carro 100% BR.)

A primeira falência foi suspensa 24 horas depois.

A segunda, não teve jeito.

FORA DE LINHA

FORA DO ÁLCOOL

Para ele, terras produtivas nasceram para fornecer comida, e não combustível



publicação enviada por João Carlos Bajesteiro

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